TU TE TORNAS ETERNAMENTE RESPONSÁVEL POR AQUILO QUE CATIVAS
Essa frase é de Saint-Exupéry — e pode ser lida no capítulo 21 do livro O Pequeno Príncipe. Eu fui pesquisar. É uma frase com belíssima sonoridade em português, e impressiona talvez por isso. Mas seu sentido é questionável. A palavra-chave para seu entendimento é "cativas", que vem do verbo "apprivoiser". Se tomarmos o verbo "cativar" significando "conquistar a simpatia", seduzir, a frase se torna ridícula: claro que não devemos nos responsabilizar, eternamente, pelo julgamento que um outro faz de nós. Menos ainda se esse eventual julgamento positivo for apressado e meramente estético.
Contudo, se tomarmos o verbo cativar pelo sentido de "prender" (e daí cativeiro, prisão, gaiola, canil, etc.), a frase começa a se sustentar: se prendermos um animal, devemos cuidar dele e garantir-lhe o sustento. Da mesma forma, se prendermos uma pessoa, também devemos cuidar dela, e garantir-lhe os direitos básicos, inclusive a comida. Acontece que, ao prendê-la, contraditoriamente, já lhe retiramos o mais básico dos seus direitos, que é o direito de ser livre. Logo, essa frase é apenas um impressionante amontoado de absurdos. Uma insensatez — que é repetida como se tivesse algum valor positivo.
E ainda chama o outro de "aquilo". Ou seja, uma coisa. Como se vê, embora bonita, é uma frase extremamente bobinha. O verbo francês "apprivoiser" significa domar, domesticar. Mas suponho que tenha sido um exagero de tradução, e que Antoine de Saint-Exupéry, no contexto, por ser um grande autor, quis dar-lhe um terceiro sentido. Ele mesmo chega a dizer que "apprivoiser" significa "criar laços". Temos que pensar um pouco mais a respeito.
E eu escrevo o texto acima desse modo quase irreverente, entre outras razões, porque sou amante da liberdade absoluta. E eu sempre procuro interpretar o texto de forma profunda e radical.
"O Pequeno Príncipe" parece uma obra simples, mas não é. Aliás, é profunda e contém a filosofia de Saint-Exupéry. Seus personagens são parabólicos: o rei, o geômetra, o contador, a raposa, a rosa, o adulto solitário e a serpente, entre outros. O pequeno príncipe era sozinho num planeta pequenino que tinha três vulcões: dois ativos e um extinto. Tinha também uma flor, belíssima e orgulhosíssima. E foi o orgulho exagerado da rosa que desestabilizou aquele mundo do pequeno príncipe e o fez empreender a viagem que o trouxe à Terra, onde encontrou personagens fantásticos, a partir dos quais descobriu o segredo do que é realmente importante na vida. É uma obra que nos mostra uma radical mudança de valores, que ensina como às vezes erramos na avaliação das coisas e das pessoas que nos cercam — e no quanto esses julgamentos são questionáveis. Nós nos preocupamos quase sempre com banalidades, nos tornamos adultos muito cedo — e rapidamente nos esquecemos da criança que ainda somos.
Leia aqui o capítulo 21. (PDF em francês)
Cativar é estabelecer laços — diz a Raposa ao Príncipe.
Porém, no meu caso, prefiro laços desatáveis e amorosos.
— Nó cego, não! — digo eu.
E a Raposa, insistente, ainda diz: — Cativa-me!
Pois, quando me cativas, me roubas o Mundo. E quando me libertas, me devolves o Mundo.
Comecei a escrever esse texto em Abril de 2008, no Guarujá, e esta atualização é de Julho de 2023, no Jardim da Casa Azul.