1.10.22

Um pé de alface

Um dia, passou por frente à loja da Tia Ana uma menina descalça vendendo alface. Era 1979. Era inverno, pouco antes do meio-dia. Uma cestinha de taquara trançada, com dois pezinhos de alface — um bonito, vistoso, e o outro, feio, mirradinho, quase murcho. Minha tia, negociante, perguntou o preço, achou caro, mesmo assim comprou um. Um. Comprou um pé de alface, só. O maior, é claro. O mais bonito. E pediu que a garotinha descalça e magrinha fosse entregá-lo, lá naquela porta, a quem atendesse à campainha. Atendeu Mariana, dez anos de idade, bonita, protegida, tratada à cenoura e leite Ninho, pele saudável, com blusa de lã, ainda com o gosto do chocolate quente no céu da boca. Ainda lambendo os lábios úmidos da manteiga Aviação recém-comida no pão sovado. E a menininha descalça, filha do Ridogério, tremendo de frio, com a cestinha de alfaces na mão esquerda, disse à outra: "Tua avó mandou entregar esse pé de alface, aqui". E entregou o mais feio, o mais murcho, o mais difícil de ser vendido depois...

Quando eu soube da história — abominável, segundo minha tia, mas genial, do meu ponto de vista — eu vibrei. Eu e minha Mãe vibramos. E concluímos que, de certo modo, a humanidade ainda não está totalmente perdida. Ainda tem gente inteligente e racional entre os humildes. Entre os famintos. Entre os que passam frio. Como aquela menininha descalça, que vendia alfaces numa cestinha de taquara...