28.12.22

Aconteceu na Romênia

Falo como se fosse Medy. Falo como se fosse noite. Como se fosse tarde. A vida tem muitas estações — eu já sabia. Estávamos numa delas, a mais fria, ao norte da Bucareste assolada pela guerra, na região industrial, com suas chaminés fumegantes apontando para um céu sombrio. Sentada numa pedra ao lado dos trilhos, eu contava os buracos que enfeitavam minhas luvas de lã. De vez em quando olhava para minha mãe, com seu lenço escurecido, emoldurando com tristeza um rosto marcado por tempo e angústia. Mesmo de longe eu sentia que seus olhos estavam úmidos. Parece que ela economizava até lágrimas, pois quase não as derramava, e elas ficavam contidas nos seus olhos, formando dois minúsculos lagos misteriosos e azuis. Sentada num banco de madeira gasta, ela todo dia esperava por alguém que nunca vinha. Se bem me lembro, nunca veio. Senti a fome outra vez — mas fiquei com vergonha de achar que era verdade. Diria Knut Hamson que a nossa situação se recusava a melhorar — e eu só podia contribuir com renúncias. Eram pequenas as renúncias que eu fazia, mas eram todas que podia fazer. Quando saíamos de casa pela manhã, já tinha consciência de que poderíamos voltar à noite com a mesma fome original. As circunstâncias me pareciam eternas, imutáveis. Minha mãe lutava com as armas que tinha, e eu já compreendia que ninguém vai além dos seus limites. Nunca lhe falei sobre fome, por maior que fosse — como essa que agora me corta em duas.

Mais um trem passou entre nós, sinuoso, e eu pisco meus olhos para vê-la entre um vagão e outro. Minha mãe era tudo o que me ligava à vida. Foi ela que me ensinou a contar, a rezar, a cantar. E, principalmente, a sorrir.

Ontem, eu contei trinta e quatro buraquinhos, e hoje, trinta e dois. Será que Deus anda consertando minhas luvas à noite, sem que eu veja? Será que é por Deus também que minha mãe espera todo dia na estação? Hoje não está nevando, mas o vento parece que tem lâminas. Brinco com pedrinhas nesse chão encardido da Romênia, e vejo minha sombra escurecer um pouco mais: é o sol que surge tímido no céu. Levanto então minha cabeça, e vejo coisas lindas. Vislumbro tudo aquilo que um dia vou ter: avião, automóveis, colares, braceletes de ouro, pulseiras divinas.

Eu me espanto.

Abro ainda mais os olhos, e vejo claramente uma mesa enorme: comidas, bebidas, flores, pérolas, pãezinhos, doces de todos os tipos, luzes, barras de chocolate. E tudo isso vai ser meu — um dia. Tudo!

A esperança acendeu meu coração de novo. Mais que esperança, era uma certeza absoluta.

Grito "mammi!"

E me levanto, atravesso os trilhos ofegantes, escorrego em pedregulhos, chego perto dela: "Mammi, sabe o que eu vi?"

Ajoelho-me à sua frente, e conto-lhe tudo, tintim por tintim — com aquela alegria pura que só uma criança consegue sentir, e mostrar que sentiu. Quero compartilhar com ela o que teremos um dia. Ela sorri, passa sua mão por meus cabelos revoltos, e não diz nada. Vejo que agora transbordam seus dois lagos azuis. Inundada de gratidão, choro também. Choro porque ela me ama. Porque demonstra com seus olhares e gestos que confia em mim:   e sabe que é verdade tudo aquilo que eu vi.

Ela acredita.


(Eu também.)




Escrevi esse texto acima no Flat Palladium em 2010, no último dos quatro anos em que lá também morei (além do Guarujá). Foi quando eu estava criando as paredes do Brasil Colonial. Nesse sofá do meio, na recepção, eu escrevi centenas de páginas para os meus livros. E lá em cima, na piscina, também.




Em abril de 2023 vou ficar uns dias lá de novo, só para me lembrar da Giulia, neta da Dryade.