2.10.22

Solidão a Mil

O filósofo, o poeta, o artista — nossa função é saltar barreiras, subir à tona, transpor obstáculos, desbravar caminhos, quebrar ícones da moral, fulminar a hipocrisia da sociedade, melhorar a vida, mudar o mundo. O poeta, o artista, o filósofo, o cientista, o escritor — somos a vanguarda da História. Somos líderes porque não podemos ser outra coisa. Em nós, razão e loucura disputam corrida. A razão ganha todas, mas num lindo gesto de grandeza cede sempre o troféu à loucura.

Pois é.
Qualquer coisa que digo pode estar na primeira página, porque tudo tem verdade que lhe sustenta. Até aquilo que nego pode às vezes ser verdade. E quando nego, também o faço porque creio. Assim como afirmo por amor e doçura, não nego com segundas intenções. Mesmo quando falo de mim penso no outro, no que representa para si — e para aquele que pensa ser. Quando digo "representa" não penso só em significância, mas também em teatro, jogo, simulação. Nem tudo o que significa diz alguma coisa — nos iludimos às vezes com aquilo que é real. Fala não se confunde com voz, aquela é mais profunda, tem mais cor, mais peso, mais volume.
Tudo neste livro merece ficar na página um.
Não dá pra se enforcar com laço de cordinhas vocais. Nem todo nó na garganta pode ser desatado. Talvez seja melhor engoli-lo do jeito que está, pois é melhor digerir o que nos sufoca e é mais forte que nós. Então penso em Nietzsche. “Não existem verdades definitivas”. O que existem são interpretações sobre a realidade, determinadas pelo ponto de vista e pela capacidade intelectual do jacaré que as propõe.
(...)
(...)
Portanto, aproveite-me, tente-me, prove-me.
De manhã, não fico ruminando o luar que já se foi. Antes do primeiro gole de café, limpo o gostinho madrugante que minha boca possa ainda estar sentindo. Não me atenho a coisas que passaram, não me ligo a cadáveres de nada, o que morre não me encanta, eu me ocupo só do agora.
Eu amo o agora.
— Só.


E se você não ainda sabe a diferença entre Minalba e Perrier, vai ter que ler este livro umas quatro ou cinco vezes. Mas esta frase eu só vou escrevê-la daqui a uns dez anos, quando estiver de novo em Bilbao, tomando um Vino Crianza que me custou a bagatela de oito euros.


Portanto, "dá-me mais um tempo, Espinosa: ainda não caiu o último grão do meu relógio de areia". Busque-me mais tarde, volte depois, porque agora estou amando como Deus, ainda conquistando minha amada imortal. Não me interrompa esse último ato, a taça de cristal da minha vida transborda de amor e prazer. Quem sorve esse néctar é a escancarada boca gulosa da liberdade absoluta. Para compor esse quadro com harmonia, cadência e sorriso, você tem que dançar comigo a dança livre da alegria pura.
Portanto, chega de médio, de pouco, de medo, de escuro.
Viva a cor, viva a coragem viva!


Texto acima está nas páginas 280 e 281 do meu livro Solidão a Mil.