27.8.22

No armazém do meu Pai

NO ARMAZÉM DE MEU PAI

Varrendo os ciscos, os papéis, as tampinhas de garrafa, todo dia, eu aprendi a amar a limpeza, mas não de forma neurótica. Varrendo, aprendi a ter disciplina. Eu só tinha nove ou dez anos, mas já varria com método, coreografando uma espécie de dança com a vassoura, meditando, desenhando na poeira coisas que combinassem com as irregularidades daquele chão de cimento queimado. Varrendo, eu planejava a minha vida. Varrendo ciscos geométricos por sobre os cacos coloridos da cerâmica vermelha eu construía uma louca arquitetura de mistérios insondáveis. E então chegava um cliente querendo talvez meio quilo de açúcar. Ou duzentos gramas de mortadela. Às vezes um pão sovado. Não importava: em qualquer das hipóteses, antes de atendê-lo, eu me transformava no Balconista do Olimpo — e o atendia sorrindo. Simpaticamente. Ou seja, varrendo e vendendo, eu aprendi a perceber padrões. Eu aprendi a interpretar as circunstâncias. Varrendo e vendendo, eu aprendi a ser cigano, a ler as mãos — e ver a Sorte. Todo dia.

Todo.
Santo.
Dia.



Aliás, naquele tempo, eu trabalhava de domingo a domingo. Inicialmente no armazém (dos oito aos doze anos) e depois na Churrascaria (dos treze aos dezessete). Eu tinha apenas uma folga por ano. Só na Sexta-feira Santa. E eu nunca reclamei por isso. No fundo, já aos oito anos de idade, eu assumi, seriamente, ter responsabilidade na economia familiar. E fiz dessa responsabilidade uma virtude.

Eu só saí da minha cidade natal porque queria estudar Filosofia na USP. E fui. E estudei. Entrei direto, sem cursinho. Três meses depois eu já estava na primeira fila, tendo aulas maravilhosas com Marilena Chauí, Oswaldo Porchat e Franklin Leopoldo e Silva, entre outros. Encantei-me com a nova situação.

Um dado interessante. Meu Pai proibiu-me de aprender datilografia. Ele me dizia que eu, com dezessete anos, já tinha a experiência de administrar, com sucesso, um armazém e um restaurante. Arrumar emprego de datilógrafo, portanto, segundo ele, seria um retrocesso. Essa parte da história em conto no meu livro Solidão a Mil. Onde eu também conto sobre o dia em que eu ganhei do meu Pai um rádio portátil Philco, de ondas curtas, trazido pelo Tito Klocker. Era o dia do meu décimo aniversário. Foi com esse rádio que eu aprendi espanhol, ouvindo a Rádio El Mundo, de Buenos Aires. Eu também ouvia, todas as noites, a Rádio Central de Moscou, a BBC, a Voz da América, e a Rádio Pequim. E isso mudou minha vida completamente. Para melhor.




Talvez por isso é que a Sorte me adora tanto. E jamais me abandonou.