Qual será dos meus irmãos aquele que não quer que eu fale mais com minha Mãe?
Será aquele que eu trouxe no colo, chuviscando, ao lado de um pai desesperado, numa charrete azul puxada por estrelas e ternuras? Será aquela, pequenina, de quem salvei a vida, tirando-a de uma tina cheia de água e sabão, com esforço indescritível? Será aquela que arrumava minha cama com amor na sua casa aconchegante, depois de dar-me um prato de comida e um abraço?
Será aquele que eu trouxe no colo, chuviscando, ao lado de um pai desesperado, numa charrete azul puxada por estrelas e ternuras? Será aquela, pequenina, de quem salvei a vida, tirando-a de uma tina cheia de água e sabão, com esforço indescritível? Será aquela que arrumava minha cama com amor na sua casa aconchegante, depois de dar-me um prato de comida e um abraço?
Qual será dos meus irmãos aquele que não quer que eu fale mais com minha Mãe?
Será aquele com quem colhemos serralha nos confins do Guarujá e depois jantamos entre vinhos e lembranças? Será aquela que me mandava pés-de-moleque, até por Sedex, e em cuja caixa ainda hoje eu guardo meus tesouros de papel? Será aquele com quem tomei cerveja inesquecível num boteco em Sorocaba várias vezes?
Qual será dos meus irmãos aquele que não quer que eu fale mais com minha Mãe?
Será aquela com quem nos perdemos na Serra da Melancia, lá no sítio do Julinho, entre coivaras e alegrias? Será aquele com quem jantamos uma bela caldeirada de salmão no Perequê, numa noite plena de confissões, de risadas e projetos? Será aquela que me escrevia poesias profundas como se eu realmente as merecesse? Será aquela com quem choramos uma tarde inteira sobre um túmulo em frangalhos? Será aquela que sempre me recebia com flores e carinho em sua casa?
Qual será dos meus irmãos aquele que não quer que eu fale mais com minha Mãe?
Será aquele que me fez chorar numa ambulância ao vê-lo todo ensanguentado? Será aquela que me emprestou dinheiro quando eu precisei demais? Será aquele que matava bois quando eu chegava e me recebia como a um rei? Será aquela a quem na minha infância eu chamava, carinhosamente, de trator? Será aquela com quem apostei uma viagem a Paris só para salvá-la de um desastre?
Qual será dos meus irmãos aquele que não quer que eu fale mais com minha Mãe?
Será aquela que eu buscava toda noite no cursinho e no trabalho em SP? Será aquela que me visitou no Guarujá, no dia em que ficamos quatro horas conversando ao lado da piscina? Será aquele para quem comprei uma brasília amarela há mais de vinte anos? Será aquela com quem comíamos filé à cubana na Barra Funda, nas horas do almoço? Será aquela cujo ex-marido tentou matar-me por eu tê-la defendido certa vez? Será aquele a quem escrevi um lindo poema, chorando na estrada deserta, logo após tê-lo visitado num hospital do interior? Será aquela que já fez tanto por mim, tão sinceramente?
Qual será dos meus irmãos aquele que não quer que eu fale mais com minha Mãe?
Será aquela que várias vezes esteve em minha casa na alameda Barros em São Paulo? Serão aquelas com quem viajávamos, que nem andarilhos românticos, pelo sul de Minas Gerais? Será aquele que trouxe a família toda ao Guarujá, numa ocasião em que abandonei até meu trabalho só para tratá-los melhor? Será aquela que sempre me disse eu te amo? Serão aquelas que um dia me encontraram sozinho numa pensão japonesa na zona do mercado? Será aquela com quem fui ao norte do Paraná atrás de um jagunço que lhe matou o marido a sangue frio? Serão aquelas a quem eu toda noite trazia sorvete de abacate, e lhes dava em silêncio?
Qual será dos meus irmãos aquele que não quer que eu fale mais com minha Mãe?
Será aquela a quem dei certa vez uma sandália barata porque eu não tinha mais dinheiro? Será aquela com quem fui ao fórum para tentar, em vão, salvá-la de um casamento horroroso? Será aquela que fotografei no dia da morte do nosso pai, pequenininha? Será aquele com quem ficamos conversando sobre a liberdade, ao lado de uma cachoeira em São Francisco? Será aquela que me convidava para jantar todo dia em sua casa no Ibirapuera? Será aquela com quem viajávamos livremente pela vida? Será aquela que agora mesmo deve estar muito triste, pensando no que fez?
Qual será dos meus irmãos aquele que não quer que eu fale mais com minha Mãe?
Será aquele a quem certa vez escrevi um poema de amor, e que foi publicado em jornal? Será aquela que me deu uma delicada camisa branca? Será aquele cujo e-mail sincero me levou às lágrimas ontem à noite? Será aquela com quem jantávamos, sempre alegres, num restaurante chinês de Perdizes? Será aquele que ficou louco por ser sensível demais? Será aquela que vivia por trás do muro de Berlim, numa casinha de madeira deliciosa, onde conversávamos ao sol da meia-tarde? Será aquela que ainda hoje me abraça dançando toda vez que me encontra?
Qual será dos meus irmãos aquele que não quer que eu fale mais com minha Mãe?
Escrito há dezessete anos, em 31.01.2004, depois que o telefone da minha Mãe foi maldosamente trocado (pelas minhas irmãs) sem que Ela tivesse sido sequer avisada a respeito disso.
Relendo hoje, 13.06.2021, no maravilhoso quintal da Casa Azul, só pra dizer que eu venci.
E continuo falando com minha Mãe.