15.6.09

meu pai sempre

Meu pai nunca foi de bater, brigar, e em seguida dar um abraço e dizer que me amava, que era o melhor pai do mundo, que só queria o meu bem, essas bobagens todas. Sou-lhe grato por ter sido afirmativo, mesmo nos atos de violência. Não era hipócrita em circunstância alguma. Mesmo quando teve amantes, tudo foi às claras. Deixava para mim a exclusiva decisão de julgar se ele era ou não convincente. Nunca nos tentou impor seus preconceitos, nem nos convencer de que ele era um bom pai. Tinha dificuldades em demonstrar amor. Queria apenas que eu fosse diferente de todos, inclusive dele. Sempre achou que eu era predestinado — a quê, não sei. Nos meus aniversários, ele costumava me dar como presente assinaturas de jornais, às vezes rádios de ondas curtas, enciclopédias, livros, essas coisas. Mas houve uma vez em que só pôde me dar, justificando racionalmente, meio pacote de bolacha e uma caçulinha da Antarctica.

Meu pai nunca me mandou ir à missa, mas se eu não fosse à escola apanhava de cinta.

Órfão desde cedo, foi lavador de garrafas, ajudante de tropeiro, guarda-livros, jogador, comerciante, alcoólatra, racional em demasia e, como já disse, delegado de polícia — não necessariamente nesta ordem. Porém, sempre foi respeitável e honesto. No dia em que mudei-me para São Paulo ele chorou escondido. E morreu do coração aos 49.


Às vezes sinto saudades dele.



Certo dia, eu quis montar um negócio no ramo de calçados. Mais precisamente, queria ser engraxate. Queria muito uma caixinha daquelas de madeira para exercer a profissão, que me parecia fascinante e lucrativa. Então, breganhei um relógio Mondaine por uma caixinha já pronta, comprei umas latinhas de graxa, arranjei uns paninhos velhos, duas ou três escovinhas de dente já usadas, um escova grande, marrom, duas tirinhas de casimira azul de uma velha calça rasgada, juntei-me a dois amiguinhos que já engraxavam — e saí para vencer na vida. Eu tinha quase sete anos. Mas não consegui vencer na vida. Pelo menos não naquele dia, pois meu pai foi me buscar no Mercado, repreendeu-me com vigor, porém delicado, deu minha "empresa" de presente a um menino pobre nosso vizinho — e pediu-me que eu tentasse outra profissão.

Segundo ele, engraxate já tinha demais... E que eu pensasse um pouco mais se era isso que realmente queria. Melhor deixar a decisão para mais tarde, quando eu crescesse.




Eis um outro fato de que agora me lembro. Era uma tarde de quinta-feira, e eu escrevo poesias numa folha de papel de embrulho. Um rádio ligado no programa do Hélio Ribeiro. Devo ter doze anos, talvez menos. Eis que chega em frente ao nosso armazém um automóvel dourado, e dele sai um gigante, cujo nome não sei. Meio bêbado, pede uma Brahma e derrama todo o conteúdo num único copo, esparramando o líquido sobrante pelo mármore do balcão, borrando meu desenho e minhas poesias. Olha para mim, e joga a garrafa aos meus pés, violentamente. Os cacos me atingem, mas não me cortam. Os demais clientes, amedrontados, não se metem. Permaneço onde estou e também sinto medo, mas não o demonstro. Ouvindo o barulho, vem minha mãe e pergunta a esse homem forte as razões pelas quais jogou a garrafa aos meus pés. Ele profere alguns palavrões, ofende minha mãe, e sai sem pagar. Entra no seu belo e reluzente Simca Chambord, e desaparece.

Chamado por telefone, meu pai chega logo em seguida, na viatura da Polícia (ele era então o Delegado da cidade), e me pergunta os detalhes. Conto-lhe. O número da placa, a cor do carro, etc. Pede-me que eu vá com ele à procura do valentão. Como a cidade é pequena, meia hora depois o encontramos na Praça São Pedro, num bar cujo nome era, se bem me lembro, Toca da Onça. Meu pai dá-lhe voz de prisão e os dois soldados que nos acompanham o colocam no camburão, com toda delicadeza. Os soldados eram irmãos, enormes, e se chamavam Lourenção e Vicentão Cavalcante. Vamos até a delegacia, meu pai ordena que coloquem o monstro numa cela vazia. Pede que eu fique olhando, do lado de fora. Ele entra na cela e diz aos dois soldados para trancarem o ferrolho, e que só interfiram se ele “estiver batendo muito ou apanhando muito”. Meu pai aponta o dedo para mim e faz uma pergunta ao gigante. Este faz um gesto de desprezo e parece ter repetido que faria tudo de novo. O que se viu então foi um massacre que durou cerca de dez minutos. Meu pai também era forte — e bateu naquele homem de uma forma que eu só veria mais tarde em filmes de Charles Bronson.

A cela depois foi aberta, e lá ficou o corpo estendido no chão. Meu pai pegou-me pela mão e me levou de volta para casa, em silêncio. Ele estava com a camisa branca rasgada e tinha muito sangue nas mãos. No caminho, ele chorou, e pouco antes de chegarmos em casa, me disse: “Nunca permita que alguém destrua as tuas poesias.” Também me disse que, se não tomasse tal medida drástica, eu poderia ficar traumatizado e com alguma necessidade de vingança pelo resto da vida. Entretanto, eu acho que ele só quis mesmo foi mostrar-me que era mais forte que o gigante. E que ele era meu pai, em todos os sentidos.

Por conta disso, perdeu o cargo de delegado de polícia, sofreu um demorado processo judicial — mas, talvez em compensação, eu me tornei um poeta libertário.




A biografia dele é muito curta. Trabalhou demais — e divertiu-se de menos. Mas há um fato pitoresco. Certa vez um dos meus irmãos, Ricardo, encontrou-o num puteiro chamado Sete Belo, no subúrbio de Campinas. Constrangidos, trocaram olhares inocentes de cumplicidade e cada qual tomou seu rumo. Nunca mais tocaram nesse assunto. Mais tarde, quando soube que ele estava tendo um caso com uma amiga minha, cheguei a lhe dizer, discretamente, que todo grande homem tem amantes. E se não tem, é porque não é...





Quando meu pai chegou em nossa casa na manhã seguinte à invasão da casa das putas — cujos detalhes contarei logo abaixo — eu estava no armazém, escrevendo num papel de embrulho um poema de amor, mentalmente dedicado a Sonia Maria, e que era assim: “Depois de acender estrelas / no teu céu da boca / depois de vasculhar os teus encantos / depois de ultrapassar os teus limites / acabei concluindo / que só a união / de duas grandes espontaneidades / pode gerar / e manter / por algum tempo / um belo caso de amor”. Em voz alta, meio sonolenta, leu duas ou três vezes esse poema, passou carinhosamente a mão na minha cabeça e antes de ir para o seu quarto rosnou um elogio inesperado: “Bonito, filho! Muito bonito! Escreva mais, escreva mais!”

(Eu só tinha doze anos, e acho que esse elogio dele me levou a ser hoje um amante da liberdade absoluta.)




Além daqueles conselhos que ele me dava — "Não minta. Não roube. Não fume. Não beba demais. Não se misture com a ralé. Nunca coma de marmita. Não bata cartão de ponto. Não use sapatos velhos. Estude bastante. Respeite muito a tua mãe. Leia dois jornais por dia. Ouça rádio. Respeite tua avó", etc. — havia um outro, quase solene: "Encaminhe os teus irmãos" — pronunciado com o dedo em riste. Acabei seguindo todos esses conselhos. Só os irmãos é que não consegui encaminhar com meu estilo de vida: ficaram todos “normais”...




Quando ele morreu, morreram as circunstâncias carcereiras de si mesmas que eu trazia no meu peito. Embora houvesse ainda um monte de coisas não resolvidas, penduradas num passado que teimava em resistir, foi fatal o tipo de adeus que nos ligou aquele dia. Antigas imagens opressoras se apagaram com o tempo, uma a uma. Tudo que de mal havia foi-se antes, ficando livre o terreno para que pudéssemos talvez amá-lo um pouco. Vivíamos uma suspensão temporária das hostilidades, uma espécie de paz armada, com certas escaramuças de vez em quando na fronteira do nosso amor.
As lembranças mais recentes eram brandas, quase delicadas, com exceção da pressa e de algumas ilusões. Claro que foi chocante sua partida, a forma como se deu. Assim como a nossa, a vida dele era um jogo — e o perdeu.

(Quando descasco a cebola da existência meus olhos ardem.)

Mesmo as oito horas que se passaram entre a ciência da sua morte e a visão do cadáver por sobre a mesa não foram suficientes para acalmar meu coração alvoroçado. Embora vencedores, os filhos trazíamos na boca um amargo sabor de derrota iminente: talvez um maior inimigo já estivesse à espreita das crianças que éramos então. Porque imprescindível seria o retorno da mãe que aparentemente pretendia morrer para salvar-se daquela vida.À beira do caixão eu descobri que meu pai passou a ser meu mais recente amor eterno. E declamei para ele, em silêncio, o poema com esse título que criei na hora. Chorando lágrimas secas. Depois eu repito aqui o poema pra você também.

Naquela noite minha mãe arrumou-me a cama em que ele dormia, no quarto que fora meu quando morava lá. Cumprindo ordens de um deus que só ela ouvia, puxou-me pelas mãos quase chorando e me disse, séria — não como mandasse, nem como pedisse:
— Você dorme aqui.
Olhei para o duplo símbolo de morte, vazio que esteve antes de mim, agora bem arrumado e com muito amor pela mulher que passou a ser viúva de si antes mesmo de lhe morrer o marido. Era como se passasse creme nos meus pés rachados... De novo olhei firme para a cama e o lençol de metáforas que a cobria, e aceitei jogar ali por um dia o meu corpo. Mas disse à minha alma assustada:
— Vai-te agora para bem longe daqui!
“Voa, alma, voa rápido — mas volta, por favor, volta buscar-me amanhã de manhã!”
(Ela voltou.)





Permeando toda essa situação de tempo e de lugar, a desfocada lembrança, imagens que a memória me trazia com insistência. Assim como Abraão, o patriarca do povo judeu que levou seu povo ao Canaã, meu pai também ouvia vozes, e nos levou ao Paraná. O chuvisqueiro enviesado continuava martelando-me as costas com suavidade quando senti sua voz me chamando, baixinho:
— Chegamos...
A fronteira ficara para trás, mas nosso estado continuava precário. Eu não entendia por que era prometida aquela terra. A quem? Essa dúvida me angustiava, talvez porque promessas foram o fundamento daquele meu tempo, um tempo escasso, sem solução, em que nada havia que não fosse provisório. Era sempre um tempo de passagem. Ele vinha em mangas de camisa, xadrez, que a chuva enegrecia e colava-lhe ao corpo. Havia me coberto com seu paletó, aquele mesmo azul-marinho do casamento. De vez em quando, acariciava-me o rosto, com gestos puros que ainda hoje moram no meu peito, inesquecíveis, demorados. Abri um pouco os olhos, vi luzes da cidade brilhando em conta-gotas, um colírio. A botina esquerda apertava-me o pé, ainda nova, quase uma comemoração, um presente prometido quando ajudei na última colheita do feijão das águas.
Levantei-me sobre o braço, encolhido, sentindo cheiro de terra e um pouco de esperança. Meu pai incentivou a marcha do Estrela com o chicote, virou-se para meu lado e, quando nossos olhos se encontraram, tentou profetizar:
— Agora as coisas vão melhorar, se Deus quiser...
Passei a mão torta pela testa, afastando o cabelo escorregado, num gesto de quem não pode acreditar.
— Você vai entrar na escola...
Estrela era o nome do meu cavalo, já dado em promessa a um santo, não sei qual. A charrete era azul, desbotada, velhinha, o nosso meio de transporte. Em cima dela, sonhava com lugares novos - mas tudo era igual.
Embaixo do banco, nossas roupas, poucas, amassadas no saco de farinha, as panelas barulhentas, a espingarda.
E o retrato da mãe, — pensei, — onde estará?...
O chuvisqueiro aumentava lá no fim da estrada sinuosa de Sengés.
— E o retrato da mãe, pai?...
Demorou para me responder, sem olhar-me nos olhos, com voz fraquinha, meio rouca, desanimada:
— Tá no bolso, na carteira...



A invasão da casa das putas.
Ainda estou revisando os detalhes históricos desse fato.


E ainda tem mais coisas — que contarei depois.