11.12.07

Meu Pai

Meu Transquerido Pai.

Por mulheres já me apaixonei duzentas e trinta e quatro vezes de forma profunda. Por homem, esta é a primeira. O processo desse amor pode ter sido longo, mas a percepção que dele tenho se deu agora, amparada em inocências complementares. Vejo-o deitado de costas, um terno de linho antigo, azul escuro e sem gravata, olhos fechados, como a pensar nas coisas da vida.

E quando muda sua boca vai falando como antes: "No céu não há luta de classes". Questão pertinente. No fundo, é o socialista mais sentimental que eu conheço. Apesar de não ter estudado, virou um defensor da lógica. Seu raciocínio é quase perfeito. "Contradições, tenho-as, mas são todas não-antagônicas" — sempre me dizia. É noite na sala da nossa casa. Fico olhando para ele, e acho que o coitado não suportaria mesmo a santa austeridade celestial: nenhuma mulher pelada, só jejuns e orações, padres por todo lado, freiras, irmãs, cardeais...


Amanhece devagar, meio sem querer. "Melhor que teu sorriso, só o orgasmo da tua mãe" — ele continua me falando. Gosto da frase, mas Édipo detesta a comparação. E me lembro das duas ou três amantes que dizem que ele teve. Deu-me vontade de perguntar sobre aquela loira gostosa da Rua 15.

Eis que interrompem nosso diálogo mágico, atarraxam-se os parafusos da tampa, mas ainda há tempo de escorrer, pela fresta que se fez entre a tampa e o caixão, belíssima, sua frase mais marcante:

É sempre bom um pouco de ficção pra realçar a verdade.

Sufocam minha esperança, engasga-se a minha dor. Sinto falta de ar. Sinto-me derrubado por dentro. Que me dessem só mais um minuto, para só mais um abraço, para um beijo de amor, para um simples toque de mãos desesperadas... Mas, não! Levam-no — discreto e silencioso.

Definitivo.

Só me resta seguir o cortejo a pé, de braços dados com minha história. Foram 2616 passos até o portão do cemitério.

Meu mundo fica fora de foco, misturo a visão com memória, o chuvisqueiro, longo, enviesado, me bate suavemente na cara. Lembro-me do nosso último abraço, com força, com emoção. Um abraço compreensivo. E lembro-me daquelas abobrinhas verdes colhidas no barranco alheio, e da lição de honestidade. A charrete azul imaginária passa por mim outra vez, puxada por estrelas e ternuras. Uma cruz de cimento, fria, pálida e sem mãos, me acena com insistência.

Desnaturam-se os critérios, falseiam-se-me as perspectivas. O cemitério vira jardim. E ao meu lado, um Deus que se ajoelha.

Tento me afastar. Mas, de novo, a cruz me acena. Como fogo, ela me chama. Disfarço então a falta de coragem, abro caminho por entre as pessoas que estão perto, subo no túmulo ainda aberto — e deixo lá, crucificada em azul fraquinho e desbotado de caneta bic, minha última e trêmula mensagem de amor ao meu pai:


— Espero que você vá para o inferno!




Hoje é aniversário da morte de meu pai. Morreu aos 49 anos. Causa mortis: pressa. E veja bem, que tristeza: 49 anos e só duas ou três amantes! /// Claro que as pessoas que me viram escrever essa última frase na cruz sobre o túmulo ficaram horrorizadas. Mas agora, lendo o poema, talvez me entendam: ele detestaria o tédio celestial. "Uma chatice", ele dizia: "sem vinho, sem churrasco, sem cerveja e sem mulher!". /// A cruz ainda existe, mas a inscrição já se apagou. Talvez um dia eu mande fazer uma nova, em bronze. O vídeo Mude foi dedicado a ele. Veja.