6.2.24

Carta ao meu Pai

Pai,

Existem assuntos que a gente consegue esgotar com meia dúzia de palavras. Porém, existem outros que requerem mil, mais que isso, muito mais. É o caso, por exemplo, da hombridade, da honra, do trabalho e da sinceridade de certas pessoas, entre as quais incluo você.

Do teu casamento nasceram filhos, mais filhos. Veja na foto, que maravilha: uma família unida, uma escadinha com muita honra. Uma escadinha de filhos que eu às vezes criticava, achava uma loucura, uma coisa sem fundamento. Agora, não. Agora eu acho que isso tudo é muito bom. Você conseguiu, junto com minha Mãe, essa criatura incomparável chamada Iracy, criar e educar, sem muita frescura mas com lealdade, todos esses filhos, que já cresceram e estão crescendo. Teus filhos foram educados livremente. Era, pelo menos para nós, os mais velhos, uma liberdade de cabresto, mas que sempre era liberdade.

Era uma liberdade de consciência.

Você nunca pediu pra ver nosso boletim da escola. Nem a Mãe pedia. Contudo, quase sempre, fomos os primeiros da classe. Não só na matemática e na biologia, mas sim nas matérias da vida, na desenvoltura, na visão do mundo. Sobretudo, na vontade de brigar pelo certo em qualquer circunstância. Como você e a Mãe. Aprendemos todos, com vocês dois, a defender os fracos e oprimidos, vendendo fiado mesmo para aqueles que não tinham dinheiro, dando de comer às crianças pobres desta vida. Em gostar de política, tivemos em vocês dois o exemplo. Talvez sem saber, inconscientemente, vocês já achavam que o homem que não se interessa por política é um simples animal. Vocês gostavam, e nós também gostamos.

É uma herança.

Semana passada, você levou algumas pessoas, alguns velhinhos para Iguape. De crianças você sempre gostou. E me lembro de que um escritor falou certa vez, que para ele o mundo ideal seria aquele em que as crianças e os velhos se sentissem felizes. Muito bom. E nós também herdamos essa vontade de amparar os desamparados.

Mas não era sobre isso que eu queria falar.

Escrevo mais para dizer que fico eternamente grato pela sua maneira de agir frente aos problemas políticos que enfrentei e enfrento. Nunca você me disse "Deixe disso" ou "Isso é bobagem". Você sempre respeitou minha liberdade de opinião — o que algumas pessoas, inclusive alguns parentes, não souberam fazer. Essa tua atitude revela o tamanho da tua bondade e entendimento do mundo.

Qualquer dia desses a gente conversa mais.

Temos muito o que falar.


Teu filho,

Edson. 26/09/1977





Também publicada no jornal "O Guarani".

Quando meu Pai morreu, trazia no bolso, numa velha carteira de couro marrom, essa carta, dobradinha, meio amarelada e com sinais evidentes de muitas leituras. Daquelas que a gente às vezes faz, sozinho — e chora. Não sei onde pode estar o original. Talvez tenha tido o mesmo destino daquelas fotos minhas que alguns dos meus irmãos jogaram fora outro dia. Fotos que estavam no álbum principal da minha Mãe.

Felizmente a memória não se perde. Não é possível rasgar uma lembrança, destruir um símbolo, esconder um coração. Manifestações de amor, como essa do meu Pai ao carregar minha carta consigo — até no dia da sua própria morte —, não se apagam.

É uma honra para mim.

Obrigado, Pai!