9.8.23

Nuvens de sorvete

— E o retrato da Mãe, Pai?...
Demorou para me responder, sem olhar-me nos olhos, com voz fraquinha, meio rouca, quase desanimada:
— Tá no bolso, na carteira...

Interessante: parece-me que nossas frases, mesmo aquelas mais decididas, eram sempre reticentes, pastosas, doloridas. Lembrei-me de minha irmã, com suas perninhas frágeis, e que havia morrido como se não tivesse tempo para viver. Passava o dia todo deitada num velho berço improvisado, olhando nuvens de sorvete no céu do Paraná. (...) Morreu sem tempo de deixar saudades, mas, diziam-me, estava morando com Deus, cercada de anjos. E com muita saúde. Um vestidinho dela ainda era guardado, de bolinhas vermelhas, com alguns buracos pequenos que pareciam enfeites. Lembrei de novo da fotografia. Quando eu crescer, vou tirar um retrato bem grande... — confessou-me o Cartier-Bresson que havia no meu peito. Um retrato onde aparecesse, além de mim, só o infinito azul do céu profundo. Voltei-me à posição inicial, ajeitei o velho paletó por sobre o corpo, fechei os olhos com força, engoli fosfenos em seco, e senti a barriga roncar outra vez.

Era fome, mas fiquei com vergonha de falar.

E foi assim que entramos na terra prometida, eu e meu Pai — sacolejando ilusões numa charrete azul puxada por estrelas e ternuras.

(...)