Vibro quando minha sensibilidade vai mais fundo que os meus olhos no objeto que eles tocam. Sinto que uma coisa redonda desliza entre nós nesta tarde azul do Guarujá. O Atlântico manda um vento oceânico e sinuoso sobre as coisas que vivemos, nós três, nesta hora feita de açúcar e escândalo. As cortinas voam. Cris me conta seus sonhos e diz que o maior deles está muito longe dela. Digo-lhe que isso é bom — e mau — ao mesmo tempo. Mau, porque há distância entre a coisa e seu desejo. E bom, porque já tem consciência do caminho a percorrer. E a distância é sempre doce!
Sentir-se preso é o primeiro passo para se ver livre.
Peço-lhe que me conte um sonho erótico, e ela fica falando. Sonhou com uma casa enorme, muros altos. Cris tem lábios indecisos, não sabem se riem ou me beijam. Fala como se nada tivesse a dizer, numa espécie contida e gostosa do que não se deve esconder. Seus mamilos crescem tanto quando suspira, despontam como dois sóis durinhos, e os de Janaína respondem de forma igual. E algo até mais profundo que a minha sensibilidade começa a sobrevoar nossas cabeças escandalosas. Cadeiras são arrastadas, copos se desesperam, as águas ficam revoltas, meu vinho vai transbordar...
Como um Zaratustra adolescente eu lhe pergunto:
— Diga-me, Cris, qual a coisa mais importante da vida?
(Ela responde com palavras que fascinam.)
— Volte ao sonho — então lhe peço.
Sonhar é impreciso.
(...)
E o sonho de Cris me joga direto no peito aberto de Freud. Janaína lembra que sonho "é a realização disfarçada de um desejo inconsciente". Para Freud, o inconsciente é uma espécie de saco de lixo, onde nossas experiências reprimidas se acumulam — ou seja, a parte não escrita da nossa biografia. Não sabemos o que fazer com tais coisas, mas também não as jogamos de vez. O inconsciente, para Jung, repousa na biologia, e as energias do corpo são as mesmas que nos fazem sonhar. Chamo Carl Gustav para que me ajude na análise, mas o sonho agora de Cris é a prometida massagem nos pés. Arrumo um colchão na sala, cubro-o de amor e cor de rosas, e peço-lhe que fique da forma que quiser. Cris então se deita de costas, e se entrega ternamente à minha espantosa naturalidade. Vejo uma alma que suspira desenhada no lençol, e me transformo no Picasso da primeira fase, preparando uma gravura. Suas pernas são perfeitas, seu corpo é feito à mão. Beijo-lhe a testa, peço que relaxe, tento soltá-la mais um pouco de si mesma, toco em todos os seus lábios entreabertos.
Ponho Enya trazendo celtas, recomendo:
— Feche os olhos, e só os abra se Janaína te pedir.
Então, de repente, faz-se o silêncio mais completo e mais gostoso que é possível de ser feito, nessas horas encantadas em que as emoções se mostram todas à flor da nossa pele. Janaína deita-se ao seu lado, e sussurra docemente: "Pense numa flor, Cris, e respire como se amasse..."
O que veio depois não é preciso que eu conte — sou discreto.
Só digo que teve tudo a ver com amor.
Com amor e liberdade.
Mas agora que ambas se foram, Ticiano se abre para mim, na página certa. Bebo o restinho de licor que ficou no copo quebrado, chupo a fatia de laranja baiana dentro dele, e beijo o olhar que Janaína deixou no espelho da sala, pregado como se fosse um bilhete.
Só me resta chamar Baco:
— Traga-me, Deus, mais um copo de vinho!
Antes que vocês se espantem, e pensem que tudo isso aconteceu ontem, eu esclareço: essas coisas maravilhosas aconteceram no Guarujá, Rua Silvio Daige, em outubro de 2004, e estão descritas na página 257 do meu livro Solidão a Mil.
Sentir-se preso é o primeiro passo para se ver livre.
Peço-lhe que me conte um sonho erótico, e ela fica falando. Sonhou com uma casa enorme, muros altos. Cris tem lábios indecisos, não sabem se riem ou me beijam. Fala como se nada tivesse a dizer, numa espécie contida e gostosa do que não se deve esconder. Seus mamilos crescem tanto quando suspira, despontam como dois sóis durinhos, e os de Janaína respondem de forma igual. E algo até mais profundo que a minha sensibilidade começa a sobrevoar nossas cabeças escandalosas. Cadeiras são arrastadas, copos se desesperam, as águas ficam revoltas, meu vinho vai transbordar...
Como um Zaratustra adolescente eu lhe pergunto:
— Diga-me, Cris, qual a coisa mais importante da vida?
(Ela responde com palavras que fascinam.)
— Volte ao sonho — então lhe peço.
Sonhar é impreciso.
(...)
E o sonho de Cris me joga direto no peito aberto de Freud. Janaína lembra que sonho "é a realização disfarçada de um desejo inconsciente". Para Freud, o inconsciente é uma espécie de saco de lixo, onde nossas experiências reprimidas se acumulam — ou seja, a parte não escrita da nossa biografia. Não sabemos o que fazer com tais coisas, mas também não as jogamos de vez. O inconsciente, para Jung, repousa na biologia, e as energias do corpo são as mesmas que nos fazem sonhar. Chamo Carl Gustav para que me ajude na análise, mas o sonho agora de Cris é a prometida massagem nos pés. Arrumo um colchão na sala, cubro-o de amor e cor de rosas, e peço-lhe que fique da forma que quiser. Cris então se deita de costas, e se entrega ternamente à minha espantosa naturalidade. Vejo uma alma que suspira desenhada no lençol, e me transformo no Picasso da primeira fase, preparando uma gravura. Suas pernas são perfeitas, seu corpo é feito à mão. Beijo-lhe a testa, peço que relaxe, tento soltá-la mais um pouco de si mesma, toco em todos os seus lábios entreabertos.
Ponho Enya trazendo celtas, recomendo:
— Feche os olhos, e só os abra se Janaína te pedir.
Então, de repente, faz-se o silêncio mais completo e mais gostoso que é possível de ser feito, nessas horas encantadas em que as emoções se mostram todas à flor da nossa pele. Janaína deita-se ao seu lado, e sussurra docemente: "Pense numa flor, Cris, e respire como se amasse..."
O que veio depois não é preciso que eu conte — sou discreto.
Só digo que teve tudo a ver com amor.
Com amor e liberdade.
Mas agora que ambas se foram, Ticiano se abre para mim, na página certa. Bebo o restinho de licor que ficou no copo quebrado, chupo a fatia de laranja baiana dentro dele, e beijo o olhar que Janaína deixou no espelho da sala, pregado como se fosse um bilhete.
Só me resta chamar Baco:
— Traga-me, Deus, mais um copo de vinho!
Antes que vocês se espantem, e pensem que tudo isso aconteceu ontem, eu esclareço: essas coisas maravilhosas aconteceram no Guarujá, Rua Silvio Daige, em outubro de 2004, e estão descritas na página 257 do meu livro Solidão a Mil.