28.3.21

No Armazém do meu Pai

NO ARMAZÉM DE MEU PAI

Varrendo os ciscos, os papéis, as tampinhas de garrafa, todo dia, eu aprendi a amar a limpeza, mas não de forma neurótica. Varrendo, aprendi a ter disciplina. Eu só tinha nove ou dez anos, mas já varria com método, coreografando uma espécie de dança com a vassoura, meditando, desenhando na poeira coisas que combinassem com as irregularidades daquele chão. Varrendo, eu planejava a minha vida. Varrendo ciscos geométricos por sobre os cacos coloridos da cerâmica vermelha eu construía uma louca arquitetura de mistérios insondáveis. E então chegava um cliente querendo talvez meio quilo de açúcar. Ou duzentos gramas de mortadela. Às vezes um pão sovado. Não importava: em qualquer das hipóteses, antes de atendê-lo, eu me transformava no Balconista do Olimpo — e o atendia sorrindo. Ou seja, varrendo e vendendo, eu aprendi a perceber padrões. A interpretar as circunstâncias. Varrendo e vendendo, eu aprendi a ser cigano, a ler as mãos — e ver a Sorte. Todo dia.
Todo.
Santo.
Dia.


Talvez por isso é que a Sorte me adora tanto.