10.4.20

O Velhinho do Ibiti

O VELHINHO DO IBITI

Eu tinha cerca de nove anos e cuidava do armazém. Na verdade era um boteco em fase de expansão. Os estoques encostavam no teto, sacarias aos montes, caixas de óleo em latas, açúcar, arroz, macarrão. Desmanchou-se um quarto para se criar mais depósito. A carteira de clientes era grande e o fiado era enorme. Geralmente, anotávamos em cadernetas, que os clientes levavam para casa. Mas também havia o pequeno fiado, o eventual, que anotávamos em vários cadernos. Pois bem. Certa manhã de domingo, antes de sair para o quintal, meu pai comentou comigo que "precisávamos reduzir o fiado". Sim, eu também concordei. E o primeiro cliente que chegou em seguida foi o Velhinho do Ibiti. Eu estava desenhando no papel de embrulho. Ele contou seus trocadinhos, desenrolou suas notinhas de um cruzeiro, e me estendeu sua mão. Naquele tempo não havia moedas, não havia centavos. Nem perguntou quanto devia, ele sabia de cor. Guardei o dinheiro na gaveta do balcão e peguei meu lápis para continuar desenhando. Em silêncio. Mas o velhinho ficou ali, me olhando, e esperando o que sempre levava. Meio quilo de sal – fiado. Que seria pago na semana seguinte, como sempre. Acontece que eu, naquele momento, havia decidido mudar a política financeira da empresa: nada mais fiado... E cometi a maior injustiça social da minha vida. Neguei ao velhinho do Ibiti o seu meio quilinho de sal.

Quando meu pai chegou contei-lhe sobre a minha decisão. Ele apenas sorriu, passou a mão na minha cabeça e pediu-me que fechasse as portas do boteco: sairíamos. Meia hora depois, numa estradinha poeirenta, sacolejando na charrete azul puxada pelo Estrela, tentávamos alcançar o velhinho do Ibiti. Nas minhas mãos, o meio quilo de sal.

Alcançamos.

Nossa conversa na volta foi muito esclarecedora. É provável que tenha sido nessa tarde de domingo que eu me tornei um comunista. E o velhinho do Ibiti continuou tendo crédito semanal para o seu meio quilinho de sal.

O Sr. Luizito — esse era o nome dele — nunca dava aprovações antecipadas nem broncas por agenda. Tínhamos obrigação de conhecer-lhe os critérios de verdade, os conceitos sobre as coisas, a filosofia de vida. Era um mestre zen com vara de marmelo. Faça o que você decidir, ele me dizia. "Se bem feito e se correto, tudo bem. Se errado, você apanha". Tudo sem frescura. Tudo simples. Direto. Funcional.


Assim era o meu pai: um bruto com coração.



Saleiro que eu ganhei hoje da Joyce Ann.



O original está numa postagem de 2010, onde eu falo do meu Pai e dos Girassóis.