Prêmio Cervantes/Brasil.
Conto. 1985.
A ORELHA
Quando ganhei o Prêmio Cervantes, ela não foi comigo, porque não suportaria me ver tão amado pelas outras na cerimônia. Dora me dizia que seu ciúme esmagava-lhe a própria alma. Aquele câncer chamado ciúme aumentava-me as dores e as penas, amputava-me as asas, me prendia, me amarrava, sufocava. E um poeta de asas cortadas vai ficando gelado...
Minha vida virou uma verdadeira prisão.
Só me expressava escrevendo.
Sempre acreditei que as circunstâncias fazem os homens na mesma medida em que os homens fazem as circunstâncias. Mas, os acontecimentos daquela tarde levaram-me a concluir que há um certo predomínio das circunstâncias sobre os homens. No fundo, aquela foi uma tarde que esperei por muito tempo, planejando-a, tentando moldar-lhe os menores detalhes, e querendo, desesperadamente, fosse ela, quando acontecesse, da mesma forma que construída pela imaginação. Elaborei fantasias as mais ridículas, chorei às vezes até não mais poder, engasgando-me com soluços que pareciam pedregulhos. Não raro perdia-me naquele resto de realidade que a vida me dava de presente, e por dentro sugava-me estranha vontade de mudar com violência o que sempre havia conseguido aceitar.
Aquela espera foi se transformando em mais uma tortura.
Porque não passava de uma espera passiva e de certo modo desnecessária. Passei a ter pesadelos horríveis, em que duas mãos crispadas e sujas tentavam sufocar-me. Acordavam-me então os companheiros de infortúnio, por força dos meus gritos de pavor. Isso era constante. Faltava-me a fome, abandonei os projetos de fuga, os amigos se afastaram.
Permeando toda essa situação de tempo e de lugar, a desfocada lembrança, imagens que a memória me trazia com insistência. Assim como Abraão, o patriarca do povo judeu que levou seu povo ao Canaã, meu pai também ouvia vozes, e nos levou ao Paraná.
O chuvisqueiro enviesado continuava martelando-me as costas com suavidade quando senti sua voz me chamando, baixinho:
— Chegamos...
A fronteira ficara para trás, mas nosso estado continuava precário. Eu não entendia por que era prometida aquela terra. A quem? Essa dúvida me angustiava, talvez porque promessas foram o fundamento daquele meu tempo, um tempo escasso, sem solução, em que nada havia que não fosse provisório.
Era sempre um tempo de passagem.
Ele vinha em mangas de camisa, xadrez, que a chuva enegrecia e colava-lhe ao corpo. Havia me coberto com seu paletó, aquele mesmo azul-marinho do casamento. De vez em quando, acariciava-me o rosto, com gestos puros que ainda hoje moram no meu peito, inesquecíveis, demorados. Abri um pouco os olhos, vi luzes da cidade brilhando em conta-gotas, um colírio. A botina esquerda apertava-me o pé, ainda nova, quase uma comemoração, um presente prometido quando ajudei na última colheita do feijão das águas. Levantei-me sobre o braço, encolhido, sentindo cheiro de terra e um pouco de esperança. Meu pai incentivou a marcha do Estrela com o chicote, virou-se para meu lado e, quando nossos olhos se encontraram, tentou profetizar:
— Agora as coisas vão melhorar, se Deus quiser...
Passei a mão torta pela testa, afastando o cabelo escorregado, num gesto de quem não pode acreditar.
— Você vai entrar na escola...
Estrela era o nome do meu cavalo, já dado em promessa a um santo, não sei qual. A charrete era azul, desbotada, velhinha, o nosso meio de transporte. Em cima dela, sonhava com lugares novos — mas tudo era igual. Embaixo do banco, nossas roupas, poucas, amassadas no saco de farinha, as panelas barulhentas, a espingarda.
E o retrato da mãe, — pensei, — onde estará?...
Constatei que, apesar da pouca idade, já conseguia ter passado e memória. Meu passado se resumia na desesperada lembrança que eu tinha de minha mãe. Atirei-lhe uma pedra na testa. Lembrança meio confusa. O sangue desceu-lhe por sobre os olhos, que suas mãos procuraram em vão escondê-los dos meus, para poupar-me talvez o susto pela pontaria, que a partir de então seria sempre certeira. Se chorou, não me lembro. Estava com ela pertinho do poço, o balde descendo no rodar cadenciado da manivela já gasta. Roupas na tina marrom, de barril, a menor — azuis, brancas e vermelhas, se não me engano. Um lenço escondendo-lhe os cabelos que nunca soube o verdadeiro comprimento, escuro, emoldurava-lhe o rosto cheio de gotinhas, não sei se de orvalho, não sei se de suor. Dedos pálidos, enrugados, cheirando a rosas.
Voltei a ouvir o trote cadenciado do Estrela, que às vezes chutava pedregulhos. O braço começou a doer. O chuvisqueiro continuava, fraco, como véu feito de riscos frente às luzes.
Dá-me pouco pão e ainda me castiga - devo ter pensado, quando saltei do carrinho de lata, aquele verde, espantando uma galinha, e joguei-lhe com força uma pedra no meio da testa: o sangue desceu-lhe por sobre os olhos que suas mãos procuraram tampá-los dos meus. Em vão: o susto permanece até hoje, e talvez seja a causa primeira desse processo caótico de espera.
A charrete balançava-se num ritmo redondo, as rodas giravam produzindo um barulho meio surdo: fi-res-to-ne... fi-res-to-ne... — era a marca do pneu, e minha mãe soletrava assim. Ela sabia ler. Eu gostava dela. Picada por cobra, morrera havia três meses, sem tempo, segundo meu pai, de chegar à Santa Casa. Disse-me que tinha ela os olhos cansados. E que inchou. E que nunca mais eu a veria.
Lembro-me agora dos mosquitinhos que caíam no meu prato de sopa de macarrão cortado, lá no sítio, no banco de madeira ao fim da tarde, a fome infantil enorme, o futuro meio ausente, o mormaço, o medo, a hora das aves marias voando na minha cabeça. Outra coisa de que me lembro era o bolo de fubá. Seco, feito sem manteiga, esfarelava na boca, mas como era gostoso com café preto, lá no morro da melancia. O riozinho tortuoso, onde me dava banho com sabão de cinzas, o rio maior, que tinha peixe e que era fundo, um perigo. Minha mãe sempre me parecia a melhor mãe do mundo. Queixava-se constantemente de dor de estômago, principalmente à noite, ao irem para cama, ela e meu pai, quando então eu aguçava meus ouvidos para captar seus diálogos. E a conversa, às vezes ríspida, girava sobre caminhos diferentes na vida deles, mais filhos ou menos filhos, pobreza, injustiça, lavouras...
Coitada da minha mãe: vivia sempre disfarçando com sorrisos lentos a vagarosa dor da vida.
— E o retrato da mãe, pai?...
Demorou para me responder, sem olhar-me nos olhos, com voz fraquinha, meio rouca, desanimada:
— Tá no bolso, na carteira...
Interessante: parece-me que nossas frases, mesmo aquelas mais decididas, eram sempre reticentes, pastosas, doloridas. Lembrei-me de minha irmã, com suas perninhas frágeis, e que morrera como se não tivesse tempo para viver. Passava o dia todo deitada num velho berço improvisado, olhando nuvens de sorvete no céu do Paraná. No retrato, ela estava ao lado de minha mãe, e isso me causava um certo ciúme. Morrera sem tempo de deixar saudades, mas, diziam-me, estava morando com deus, cercada de anjos. E com muita saúde. Um vestidinho dela ainda era guardado, de bolinhas vermelhas, com alguns buracos pequenos que pareciam enfeites. Quando crescer, vou tirar um retrato bem grande... — confessou-me o Cartier-Bresson que havia no meu peito. Um retrato onde aparecesse, além de mim, só o infinito azul do céu. Voltei-me à posição inicial, ajeitei o paletó por sobre o corpo, fechei os olhos com força, engoli fosfenos em seco, senti a barriga roncar outra vez.
Era fome, mas fiquei com vergonha de falar.
E foi assim que entramos na terra prometida, eu e meu pai — sacolejando ilusões numa charrete azul puxada por estrelas e ternuras.
Acontece que essas lembranças, com precisão fotográfica, perturbam-me. Se houve épocas em que cheguei a questionar até a validade das carícias, a necessidade do contato físico amoroso, isso se deveu à ausência dos carinhos que sempre me negou, quer pela distância, quer pela mentira. Passei a ter impressão de que a notícia de sua vinda começava a prejudicar irremediavelmente aquela situação de equilíbrio emocional entre o mundo desgraçado em que vivia e o conjunto instável das minhas aspirações.
Terei sido eu o primeiro a criar a necessidade dessa distância que passou a existir entre nós, ou preciso mesmo dessa geografia de excessos para manter apagadas minhas concepções mais antigas com relação ao que posso gostar?
Ninguém tem culpa de ser o que é, e nem pode, por si mesmo, ser de outra forma. Alguns precisam de ajuda, mas nem todos se permitem essa humildade. Muitos talvez não tenham conserto, e outros não têm consciência. Todos quase sempre se enganam, às vezes na qualidade da promessa, outras vezes no tamanho das expectativas. Chorar em ombros amigos foi coisa que nunca soube nem pude fazer. Não que me faltasse a vontade: faltavam-me ombros amigos, e meus olhos não tinham mais lágrimas.
Minha vida é uma porta que se abre à história mas se fecha aos meus amores. Meu contraído corpo de réptil me envergonha, me atrapalha e desespera. Os ódios que suponho sentir me enrijecem, e não me deixam sequer perceber o cheiro das coisas livres. Esses anos todos aqui dentro mudaram-me radicalmente. Mas não sei se fui modificado mais pelos anos que se passaram, ou se pela cadeia propriamente. Ou se por ambas as coisas. Aqui, a gente vai percebendo o reverso da medalha. E percebendo de uma forma diferente, pois as perspectivas vão se tornando caóticas, o leque de opções vai se fechando, as oportunidades, diminuindo.
A gente passa a não mais saber de que lado ficou a verdade.
Em certos momentos, começamos a ver que todo realismo tende a ser conservador. Porque o sonho é sempre mais importante do que a realidade que o suporta. A tarde surgiu bonita, apesar de que o sol de inverno, esmaecido, quase nem sombras fazia no pátio da nossa espera. A calma daquelas coisas dormidas me afastava da razão, o nó na garganta entorpecia a fala mole. Sentado no primeiro banco, logo à entrada do portão principal, esperava minha mãe. Meus dedos tamborilavam na madeira, como se a tarja negra da sujeira das unhas executasse um balé de prisioneiros. Na verdade, esses dedos queriam chorar a iminência do inevitável. O corpo todo tremia.
Procurava não olhar em coisas que tivessem olhos de retribuição, ao mesmo tempo em que mastigava a liberdade da minha língua, e mordia os lábios ressequidos por falta de vitaminas. Triste o papel que teria de representar por força daquilo que agora chamo de determinismo absoluto. Senti dores no estômago. Como a ansiedade não me deixou novamente almoçar, talvez fosse fome.
Muita gente passando, abraços, sorrisos, fogo acendendo cigarros, saudades e paixões. Não será ela uma dessas que passaram? Não, o guarda iria trazê-la até mim, não seria capaz de reconhecê-la, suas feições já não devem ser as mesmas.
Comecei a montar o desesperante cavalo da angústia.
Parecia-me que apenas eu estava sozinho. A espera da mãe que supunha morta misturava-se à promessa de escola que meu pai fizera, e que nunca se concretizara. E foi nesse momento, aguardando mais uma promessa, que levantei a cabeça. Não gostava muito de mulheres será que dela iria gostar? Será que aquele encontro seria um renascimento, pelo fato de que ambos iríamos nos re-conhecer? Terá sido ela, realmente, culpada disso tudo? Será que não teve razões em fazer o que fez? Não consigo me lembrar das cores do vestido, não consigo. Frente a frente, depois de tantos anos. Tentei iludir-me, colocar um pouco de sentimento no olhar, dissimular talvez uma paixão que não sentia. Ela estava com falsos cabelos loiros, muito maquiada. Lembrei-me do lenço de bolinhas azuis à beira do poço. Demoramo-nos olhando nos olhos. Brinquei de novo no meu carrinho de lata. Estendeu-me suas mãos e murmurou algo como você está muito bonito, um homem feito... senti muito a tua falta.
Suas mãos estavam quentes.
Aquele momento me parece ainda indescritível.
(Talvez um dia possa contar tudo).
O perfume que ela usava, forte, doce, barato, chegava a excitar-me. Idéias estranhas passaram-me pela cabeça. Ela chorou, e eu senti o gosto salgado das suas lágrimas. Acho que por momentos desisti da vingança para amá-la totalmente. Tomei-a nos braços para um beijo de amor - de amor e despedida. Tive medo, e vontade de dizer a todos que aquela necessidade de ficcionar um delírio não passava de uma ilusão grotesca.
E a iminência do inevitável voltou a me assustar.
Algo fez-me mudar de idéia.
A lembrança do retrato em que eu estava ausente. O bolo de fubá, o abraço que ela me dava - não sei. No pátio não havia mais ninguém. Fez-se um silêncio absoluto, um silêncio gelado. Tomei-a de novo nos braços para um beijo de amor e despedida. Soava uma campainha, dizendo que a visita chegara ao fim.
Seria agora - ou nunca mais!
(...)
A história continua.
Mas agora vou fechar as aspas que esqueci de abrir antes de acreditar nas circunstâncias. Claro que esta é apenas uma bela história inventada que o destino escreveu certa vez em meu nome. Era só mais uma peça que a vida me pregava. Em verdade, jamais trocaria minha Mãe por um prêmio que me levasse à Espanha. A orelha dela foi feita para o beijo, não para a mordida.
Acontece que entre ficção e biografia existe um prêmio!
Então, volto ao presente e me questiono. Se meu amor é diferente a cada instante, como poderei te amar a mesma todo dia? Como repetir outra vez o meu risco brilhante na tua escuridão incendiada?
Ontem comprei flores para recordar o nosso amor; hoje, um frango assado faz lembrar-me de você. Ontem, chorei ao rever as nossas fotos; hoje, tomo vinho num corpo de cristal e já não sei se me arrependo. Ontem, fiquei sozinho no meu quarto; hoje, uma deusa nova me espera em nossa cama, e me sorri. Ontem, chorei demais a tua ausência; hoje — nem sequer me lembro de você. Parece ser verdade: Quem ama só se realiza ao superar a própria memória do seu amor.
Então.
Há uma pequena prisão dentro de uma grande prisão.
Por isso, o pior é quando estamos na menor.
Mas vocês não percebem que.
Conto. 1985.
A ORELHA
Quando ganhei o Prêmio Cervantes, ela não foi comigo, porque não suportaria me ver tão amado pelas outras na cerimônia. Dora me dizia que seu ciúme esmagava-lhe a própria alma. Aquele câncer chamado ciúme aumentava-me as dores e as penas, amputava-me as asas, me prendia, me amarrava, sufocava. E um poeta de asas cortadas vai ficando gelado...
Minha vida virou uma verdadeira prisão.
Só me expressava escrevendo.
Sempre acreditei que as circunstâncias fazem os homens na mesma medida em que os homens fazem as circunstâncias. Mas, os acontecimentos daquela tarde levaram-me a concluir que há um certo predomínio das circunstâncias sobre os homens. No fundo, aquela foi uma tarde que esperei por muito tempo, planejando-a, tentando moldar-lhe os menores detalhes, e querendo, desesperadamente, fosse ela, quando acontecesse, da mesma forma que construída pela imaginação. Elaborei fantasias as mais ridículas, chorei às vezes até não mais poder, engasgando-me com soluços que pareciam pedregulhos. Não raro perdia-me naquele resto de realidade que a vida me dava de presente, e por dentro sugava-me estranha vontade de mudar com violência o que sempre havia conseguido aceitar.
Aquela espera foi se transformando em mais uma tortura.
Porque não passava de uma espera passiva e de certo modo desnecessária. Passei a ter pesadelos horríveis, em que duas mãos crispadas e sujas tentavam sufocar-me. Acordavam-me então os companheiros de infortúnio, por força dos meus gritos de pavor. Isso era constante. Faltava-me a fome, abandonei os projetos de fuga, os amigos se afastaram.
Permeando toda essa situação de tempo e de lugar, a desfocada lembrança, imagens que a memória me trazia com insistência. Assim como Abraão, o patriarca do povo judeu que levou seu povo ao Canaã, meu pai também ouvia vozes, e nos levou ao Paraná.
O chuvisqueiro enviesado continuava martelando-me as costas com suavidade quando senti sua voz me chamando, baixinho:
— Chegamos...
A fronteira ficara para trás, mas nosso estado continuava precário. Eu não entendia por que era prometida aquela terra. A quem? Essa dúvida me angustiava, talvez porque promessas foram o fundamento daquele meu tempo, um tempo escasso, sem solução, em que nada havia que não fosse provisório.
Era sempre um tempo de passagem.
Ele vinha em mangas de camisa, xadrez, que a chuva enegrecia e colava-lhe ao corpo. Havia me coberto com seu paletó, aquele mesmo azul-marinho do casamento. De vez em quando, acariciava-me o rosto, com gestos puros que ainda hoje moram no meu peito, inesquecíveis, demorados. Abri um pouco os olhos, vi luzes da cidade brilhando em conta-gotas, um colírio. A botina esquerda apertava-me o pé, ainda nova, quase uma comemoração, um presente prometido quando ajudei na última colheita do feijão das águas. Levantei-me sobre o braço, encolhido, sentindo cheiro de terra e um pouco de esperança. Meu pai incentivou a marcha do Estrela com o chicote, virou-se para meu lado e, quando nossos olhos se encontraram, tentou profetizar:
— Agora as coisas vão melhorar, se Deus quiser...
Passei a mão torta pela testa, afastando o cabelo escorregado, num gesto de quem não pode acreditar.
— Você vai entrar na escola...
Estrela era o nome do meu cavalo, já dado em promessa a um santo, não sei qual. A charrete era azul, desbotada, velhinha, o nosso meio de transporte. Em cima dela, sonhava com lugares novos — mas tudo era igual. Embaixo do banco, nossas roupas, poucas, amassadas no saco de farinha, as panelas barulhentas, a espingarda.
E o retrato da mãe, — pensei, — onde estará?...
Constatei que, apesar da pouca idade, já conseguia ter passado e memória. Meu passado se resumia na desesperada lembrança que eu tinha de minha mãe. Atirei-lhe uma pedra na testa. Lembrança meio confusa. O sangue desceu-lhe por sobre os olhos, que suas mãos procuraram em vão escondê-los dos meus, para poupar-me talvez o susto pela pontaria, que a partir de então seria sempre certeira. Se chorou, não me lembro. Estava com ela pertinho do poço, o balde descendo no rodar cadenciado da manivela já gasta. Roupas na tina marrom, de barril, a menor — azuis, brancas e vermelhas, se não me engano. Um lenço escondendo-lhe os cabelos que nunca soube o verdadeiro comprimento, escuro, emoldurava-lhe o rosto cheio de gotinhas, não sei se de orvalho, não sei se de suor. Dedos pálidos, enrugados, cheirando a rosas.
Voltei a ouvir o trote cadenciado do Estrela, que às vezes chutava pedregulhos. O braço começou a doer. O chuvisqueiro continuava, fraco, como véu feito de riscos frente às luzes.
Dá-me pouco pão e ainda me castiga - devo ter pensado, quando saltei do carrinho de lata, aquele verde, espantando uma galinha, e joguei-lhe com força uma pedra no meio da testa: o sangue desceu-lhe por sobre os olhos que suas mãos procuraram tampá-los dos meus. Em vão: o susto permanece até hoje, e talvez seja a causa primeira desse processo caótico de espera.
A charrete balançava-se num ritmo redondo, as rodas giravam produzindo um barulho meio surdo: fi-res-to-ne... fi-res-to-ne... — era a marca do pneu, e minha mãe soletrava assim. Ela sabia ler. Eu gostava dela. Picada por cobra, morrera havia três meses, sem tempo, segundo meu pai, de chegar à Santa Casa. Disse-me que tinha ela os olhos cansados. E que inchou. E que nunca mais eu a veria.
Lembro-me agora dos mosquitinhos que caíam no meu prato de sopa de macarrão cortado, lá no sítio, no banco de madeira ao fim da tarde, a fome infantil enorme, o futuro meio ausente, o mormaço, o medo, a hora das aves marias voando na minha cabeça. Outra coisa de que me lembro era o bolo de fubá. Seco, feito sem manteiga, esfarelava na boca, mas como era gostoso com café preto, lá no morro da melancia. O riozinho tortuoso, onde me dava banho com sabão de cinzas, o rio maior, que tinha peixe e que era fundo, um perigo. Minha mãe sempre me parecia a melhor mãe do mundo. Queixava-se constantemente de dor de estômago, principalmente à noite, ao irem para cama, ela e meu pai, quando então eu aguçava meus ouvidos para captar seus diálogos. E a conversa, às vezes ríspida, girava sobre caminhos diferentes na vida deles, mais filhos ou menos filhos, pobreza, injustiça, lavouras...
Coitada da minha mãe: vivia sempre disfarçando com sorrisos lentos a vagarosa dor da vida.
— E o retrato da mãe, pai?...
Demorou para me responder, sem olhar-me nos olhos, com voz fraquinha, meio rouca, desanimada:
— Tá no bolso, na carteira...
Interessante: parece-me que nossas frases, mesmo aquelas mais decididas, eram sempre reticentes, pastosas, doloridas. Lembrei-me de minha irmã, com suas perninhas frágeis, e que morrera como se não tivesse tempo para viver. Passava o dia todo deitada num velho berço improvisado, olhando nuvens de sorvete no céu do Paraná. No retrato, ela estava ao lado de minha mãe, e isso me causava um certo ciúme. Morrera sem tempo de deixar saudades, mas, diziam-me, estava morando com deus, cercada de anjos. E com muita saúde. Um vestidinho dela ainda era guardado, de bolinhas vermelhas, com alguns buracos pequenos que pareciam enfeites. Quando crescer, vou tirar um retrato bem grande... — confessou-me o Cartier-Bresson que havia no meu peito. Um retrato onde aparecesse, além de mim, só o infinito azul do céu. Voltei-me à posição inicial, ajeitei o paletó por sobre o corpo, fechei os olhos com força, engoli fosfenos em seco, senti a barriga roncar outra vez.
Era fome, mas fiquei com vergonha de falar.
E foi assim que entramos na terra prometida, eu e meu pai — sacolejando ilusões numa charrete azul puxada por estrelas e ternuras.
Acontece que essas lembranças, com precisão fotográfica, perturbam-me. Se houve épocas em que cheguei a questionar até a validade das carícias, a necessidade do contato físico amoroso, isso se deveu à ausência dos carinhos que sempre me negou, quer pela distância, quer pela mentira. Passei a ter impressão de que a notícia de sua vinda começava a prejudicar irremediavelmente aquela situação de equilíbrio emocional entre o mundo desgraçado em que vivia e o conjunto instável das minhas aspirações.
Terei sido eu o primeiro a criar a necessidade dessa distância que passou a existir entre nós, ou preciso mesmo dessa geografia de excessos para manter apagadas minhas concepções mais antigas com relação ao que posso gostar?
Ninguém tem culpa de ser o que é, e nem pode, por si mesmo, ser de outra forma. Alguns precisam de ajuda, mas nem todos se permitem essa humildade. Muitos talvez não tenham conserto, e outros não têm consciência. Todos quase sempre se enganam, às vezes na qualidade da promessa, outras vezes no tamanho das expectativas. Chorar em ombros amigos foi coisa que nunca soube nem pude fazer. Não que me faltasse a vontade: faltavam-me ombros amigos, e meus olhos não tinham mais lágrimas.
Minha vida é uma porta que se abre à história mas se fecha aos meus amores. Meu contraído corpo de réptil me envergonha, me atrapalha e desespera. Os ódios que suponho sentir me enrijecem, e não me deixam sequer perceber o cheiro das coisas livres. Esses anos todos aqui dentro mudaram-me radicalmente. Mas não sei se fui modificado mais pelos anos que se passaram, ou se pela cadeia propriamente. Ou se por ambas as coisas. Aqui, a gente vai percebendo o reverso da medalha. E percebendo de uma forma diferente, pois as perspectivas vão se tornando caóticas, o leque de opções vai se fechando, as oportunidades, diminuindo.
A gente passa a não mais saber de que lado ficou a verdade.
Em certos momentos, começamos a ver que todo realismo tende a ser conservador. Porque o sonho é sempre mais importante do que a realidade que o suporta. A tarde surgiu bonita, apesar de que o sol de inverno, esmaecido, quase nem sombras fazia no pátio da nossa espera. A calma daquelas coisas dormidas me afastava da razão, o nó na garganta entorpecia a fala mole. Sentado no primeiro banco, logo à entrada do portão principal, esperava minha mãe. Meus dedos tamborilavam na madeira, como se a tarja negra da sujeira das unhas executasse um balé de prisioneiros. Na verdade, esses dedos queriam chorar a iminência do inevitável. O corpo todo tremia.
Procurava não olhar em coisas que tivessem olhos de retribuição, ao mesmo tempo em que mastigava a liberdade da minha língua, e mordia os lábios ressequidos por falta de vitaminas. Triste o papel que teria de representar por força daquilo que agora chamo de determinismo absoluto. Senti dores no estômago. Como a ansiedade não me deixou novamente almoçar, talvez fosse fome.
Muita gente passando, abraços, sorrisos, fogo acendendo cigarros, saudades e paixões. Não será ela uma dessas que passaram? Não, o guarda iria trazê-la até mim, não seria capaz de reconhecê-la, suas feições já não devem ser as mesmas.
Comecei a montar o desesperante cavalo da angústia.
Parecia-me que apenas eu estava sozinho. A espera da mãe que supunha morta misturava-se à promessa de escola que meu pai fizera, e que nunca se concretizara. E foi nesse momento, aguardando mais uma promessa, que levantei a cabeça. Não gostava muito de mulheres será que dela iria gostar? Será que aquele encontro seria um renascimento, pelo fato de que ambos iríamos nos re-conhecer? Terá sido ela, realmente, culpada disso tudo? Será que não teve razões em fazer o que fez? Não consigo me lembrar das cores do vestido, não consigo. Frente a frente, depois de tantos anos. Tentei iludir-me, colocar um pouco de sentimento no olhar, dissimular talvez uma paixão que não sentia. Ela estava com falsos cabelos loiros, muito maquiada. Lembrei-me do lenço de bolinhas azuis à beira do poço. Demoramo-nos olhando nos olhos. Brinquei de novo no meu carrinho de lata. Estendeu-me suas mãos e murmurou algo como você está muito bonito, um homem feito... senti muito a tua falta.
Suas mãos estavam quentes.
Aquele momento me parece ainda indescritível.
(Talvez um dia possa contar tudo).
O perfume que ela usava, forte, doce, barato, chegava a excitar-me. Idéias estranhas passaram-me pela cabeça. Ela chorou, e eu senti o gosto salgado das suas lágrimas. Acho que por momentos desisti da vingança para amá-la totalmente. Tomei-a nos braços para um beijo de amor - de amor e despedida. Tive medo, e vontade de dizer a todos que aquela necessidade de ficcionar um delírio não passava de uma ilusão grotesca.
E a iminência do inevitável voltou a me assustar.
Algo fez-me mudar de idéia.
A lembrança do retrato em que eu estava ausente. O bolo de fubá, o abraço que ela me dava - não sei. No pátio não havia mais ninguém. Fez-se um silêncio absoluto, um silêncio gelado. Tomei-a de novo nos braços para um beijo de amor e despedida. Soava uma campainha, dizendo que a visita chegara ao fim.
Seria agora - ou nunca mais!
(...)
A história continua.
Mas agora vou fechar as aspas que esqueci de abrir antes de acreditar nas circunstâncias. Claro que esta é apenas uma bela história inventada que o destino escreveu certa vez em meu nome. Era só mais uma peça que a vida me pregava. Em verdade, jamais trocaria minha Mãe por um prêmio que me levasse à Espanha. A orelha dela foi feita para o beijo, não para a mordida.
Acontece que entre ficção e biografia existe um prêmio!
Então, volto ao presente e me questiono. Se meu amor é diferente a cada instante, como poderei te amar a mesma todo dia? Como repetir outra vez o meu risco brilhante na tua escuridão incendiada?
Ontem comprei flores para recordar o nosso amor; hoje, um frango assado faz lembrar-me de você. Ontem, chorei ao rever as nossas fotos; hoje, tomo vinho num corpo de cristal e já não sei se me arrependo. Ontem, fiquei sozinho no meu quarto; hoje, uma deusa nova me espera em nossa cama, e me sorri. Ontem, chorei demais a tua ausência; hoje — nem sequer me lembro de você. Parece ser verdade: Quem ama só se realiza ao superar a própria memória do seu amor.
Então.
Há uma pequena prisão dentro de uma grande prisão.
Por isso, o pior é quando estamos na menor.
Mas vocês não percebem que.