4.8.10

Teoria do Acaso

Eis os primeiros capítulos do meu novo livro
Teoria do Acaso


1. Uma borboleta voa e você levanta a cabeça para segui-la. Tenta acompanhá-la com olhares, não somente pela graça do seu vôo, mas por seu significado poético. A borboleta é o símbolo mais perfeito do ócio artístico e da liberdade criadora. Fascina porque é bela e livre. As borboletas são independentes. Não existe ciúme entre elas, nenhuma controla o vôo da outra, não existe desenho prévio para o tipo de vôo que vão voar quando saem a passeio. Não fazem planos para os vôos do dia seguinte, não acumulam coisas, não carregam nada nas costas, não se casam nem se prometem coisas absurdas. Por isso as borboletas fascinam. Por isso as pessoas querem seguir as borboletas. Voar como elas. Ser como elas.


2. Coivaras são restos ou pilhas de ramagens não totalmente atingidas pela queimada, na roça à qual se deitou fogo a fim de limpar o terreno para uma lavoura. Mais ainda, coivaras são em verdade, no dicionário da minha lembrança pura, aqueles troncos e galhos enegrecidos, quase um carvão, que ficam abandonados e caídos depois da queimada. Ontem o pai do menino, em sucessivas viagens demoradas de uma carroça velha, trouxe coivaras para que sirvam como lenha, e fez delas uma pilha lá no canto do quintal, ao lado da horta. Vai arrumar um encerado para cobri-las da chuva que costuma cair na região nesses meses de verão.


3. Metodologia é a arte de conduzir o espírito num processo destinado a investigar a verdade. A metodologia que eu adoto e uso é a minha arte pessoal de conduzir o meu próprio espírito, a meu modo e de uma maneira especial, nesse processo que construo para investigar certas verdades que escolho ao acaso, e que de certa forma me interessam, particularmente, por algum tempo.


4. Tinha ele uma teoria sobre a importância das borboletas na definição dos rumos da filosofia. Dizia que Sócrates só se decidiu por ser o que era depois que sua mãe, que era parteira na Grécia, sonhou treze dias consecutivamente que todas as mulheres gregas estavam parindo crisálidas vermelhas.


5. Uma teoria é geralmente um conjunto de conhecimentos não muito ingênuos, sistematizados e com alguma credibilidade, e que se propõem explicar, analisar, interpretar, ou unificar um determinado universo de fenômenos ou de acontecimentos.


6. Vejo nesta manhã duas borboletas azuis dançando no quintal da minha mãe. Que tem um gramado enorme, verdejante, uma horta de cenouras, um jardim de Epicuro. Cebolinhas, araçás, um pé de limão rosa, uma parreira produzindo. Os pessegueiros em flor me lembram Kurosawa em seus sonhos amarelos. Galinhas cacarejam no terreno do vizinho. E eu fico tomando cafe numa xícara de cabo quebrado e divagando, deliciosamente. Borboletas, vocês sabem, são insetos lepidópteros diurnos, cujas antenas são clavadas. As larvas das borboletas não têm casulos, passando o período ninfal sob a forma de crisálidas. Antes que você precise ir ao dicionário — eu fui. Insetos são animais artrópodes da classe Insecta, cujo corpo é dividido em cabeça, com um par de antenas, e tórax com três pares de patas. Asas ausentes, ou em número de duas ou de quatro; respiração por meio de traquéias. Na maioria, os insetos são terrestres. Antena, no caso, é o apêndice cefálico sensorial dos artrópodes. Os crustáceos, como o camarão, a lagosta e o caranguejo, têm quatro antenas. Os aracnídeos, como as aranhas, escorpiões e ácaros, não têm antenas. Os tardígrados também não, mas têm quatro pares de patas não articuladas, curtas e grossas, cada uma com duas ou quatro unhas no ápice. Dizem que Deus criou tudo isso, mas com outros nomes, tudo em latim. Os pentastomídeos, entre eles o piolho e o chato, são ectoparasitos do homem. O menino que tropeçou e caiu na pilha de coivaras tinha uma multidão de piolhos em sua cabeça. Olhou uma borboleta, distraiu-se e tropeçou. Cada piolho chega a depositar, sob a forma de lêndeas, até trezentos ovos em seu curto período de vida, que é de cerca de seis a oito semanas. Os piolhos transmitem doenças infecciosas, entre as quais o tifo. O empregado que ajudou o pai do menino a transportar as coivaras morreu de tifo quatro anos depois, abandonado num pequeno hospital de uma cidade do nordeste. Futuramente, cientistas irão formular uma tese interessante, sobre serem as infecções parasitárias uma das principais causas do baixo QI. Por isso é que, para alguns — os desavalidos, os abandonados, os doentes, os que sofrem — a vida é uma sucessão de fracassos encadeados e impiedosos. Mas essa é outra história.



7. Muitas mulheres marcam deliciosamente a minha vida. Todas são especiais; nove são musas. Mas uma delas se destaca... Uma mulher que jamais quebrou as lanças da minha ousadia, e nunca pensou em cortar-me as asas de pássaro livre. Uma mulher que me apóia com entusiasmo, incentiva os meus saltos profundos e me aplaude em todas as conquistas.

Ela compreende os meus gestos, mesmo quando parados no ar. Ela me aceita como sou, inteiramente. E me faz acreditar, cada vez mais, que o verdadeiro amor é a união gostosa de duas espontaneidades, a fusão poética de dois devaneios.

Essa mulher é minha mãe. Às vezes a geografia nos separa um pouco, mas temos uma ponte entre nós dois chamada Amor. E eu sempre me lembro das canções de ninar que ela cantava para que eu não dormisse... Do Kyrie Eleison e Tantum Ergo a Dalva de Oliveira e Noel Rosa. E também me lembro do dia em que eu nasci.


8. Era um dia de duplas esperanças. Era uma noite de luar azul escandaloso. Era um sábado de alelúias, era hora de metáforas e loucuras. Era uma casinha de madeira e Primavera ao lado de uma bela roseira branca no finzinho de uma rua principal. Como toda mulher inocente, minha mãe estava grávida de amor: havia sido deflorada à beira de um poço por um Inspírito Santo alado e dançante. Era madrugada de novo e ela estava sozinha outra vez. Foi então que essa Mulher resolveu me dar a Luz - em todos os sentidos.

Era o começo de uma história de Amor.


9. A Teoria do Caos diz, entre outras coisas, que uma suave borboleta voando em Pequim pode causar um terremoto em Nova York. Ou vice-versa. Veja aqui por que.


10. Acabo de ver a nova lua aqui no céu do Paraná. Envolta em nuvens, como que protegida por elas — ou aprisionada por elas, talvez. Entretanto, sabemos que a lua não precisa de proteção nem se deixa aprisionar. A lua é que nem o meu amor: livre, está muito acima das nuvens. As nuvens são todas passageiras — mas a lua permanece a mesma. Aliás, a lua também muda, mas não a sua essência. Ela gira sobre a Terra, numa dança espiralada, um frenesi a milhares de quilômetros por hora. Enquanto dança, ela nos permite que lhe vejamos outras faces suas, nuas. Tem a face que parece minguar, tem a face que parece crescer, tem a renovada e a completa. Mas tem outras, tantas, que sequer imaginamos.

Contudo, seguindo o que lhe disse Jesus Cristo certa noite lá no sul da Galiléia, quando lhe acariciamos a fase esquerda, ela nos mostra também a direita.

A lua sempre me fascina.
Quando olho pra ela, meu coração se ilumina.


11. Não é preciso que você respeite muito o que te digo agora nem que me venere tanto. Só não quero falar para caídos. Levante-se, portanto, e me ouça. Mas me ouça com atenção, porque não vou durar para sempre, nem ficar aqui repetindo meus textos e rezas pelo resto da vida. Pense no que estou te dizendo neste momento, neste insistante momento em que o tempo passa e pulsa como um coração desesperado — mais desesperado do que o teu.

Porém não pare aí nem pare aqui: pense bem, pense fundo, profundo, até o fim... Raciocine. Se é que te pedir raciocínio não é te pedir demais. Entre no meu pensamento, mergulhe nele — e me ultrapasse. Se não, você não vai compreender.

É preciso que você arranque o resto de trilhos que tem essa estrada curva em que você patina, essa estrada sinuosa em que você às vezes encalha. É preciso que você encha teu peito de alegria e de aventura. É preciso que você suba em mim, trepe no que eu falo, dance em minha língua. É preciso que você cavalgue os meus poemas todo dia. Porque sou poeta bailarino. Um poeta louco, romântico, livre... e teu.

Por enquanto.


12. Quando meu pai chegou em nossa casa na manhã seguinte eu estava no armazém, escrevendo num papel de embrulho um poema de amor, mentalmente dedicado a Sonia Maria, e que era assim: “Depois de acender estrelas / no teu céu da boca / depois de vasculhar os teus encantos / depois de ultrapassar os teus limites / acabei concluindo / que só a união / de duas grandes espontaneidades / pode gerar / e manter / por algum tempo / um belo caso de amor”.

Em voz alta, meio sonolenta, leu duas ou três vezes esse poema, passou carinhosamente a mão na minha cabeça e antes de ir para o seu quarto rosnou um elogio inesperado: “Bonito, filho! Muito bonito! Escreva mais, escreva mais!”

(Eu só tinha doze anos, e acho que esse elogio me levou a ser hoje um escritor.)

Alguns conselhos que ele me dava: “Não minta. Não roube. Não fume. Não beba demais. Não se misture com a ralé. Nunca coma de marmita. Não bata cartão de ponto. Não use sapatos velhos. Estude bastante. Nunca brigue com tua mãe. Leia dois jornais por dia. Ouça rádio. Respeite tua vó. Encaminhe teus irmãos.”

(Segui todos esses conselhos. Só os irmãos é que não consegui encaminhar com meu estilo de vida: ficaram todos normais...)

Meu pai nunca nos disse que gostava de poesia, mas certa vez mandou que plantassem trezentos e sessenta pés de girassol no fundo do quintal. Depois que as plantas cresceram ele ficava todos os dias lá no fundo, sentado feito Cazuza num banquinho de madeira, sorrindo, olhando os girassóis girarem. Ele — no fundo, no fundo — talvez fosse um poeta, mas nunca nos contou.

Quando morreu, morreram as circunstâncias carcereiras de si mesmas que eu trazia no meu peito. Embora houvesse ainda um monte de coisas não resolvidas, penduradas num passado que teimava em resistir, foi fatal o tipo de adeus que nos ligou aquele dia. Antigas imagens opressoras se apagaram com o tempo, uma a uma. Tudo que de mal havia foi-se antes, ficando livre o terreno para que pudéssemos talvez amá-lo um pouco. Vivíamos uma suspensão temporária das hostilidades, uma espécie de paz armada, com certas escaramuças de vez em quando na fronteira do nosso amor.
As lembranças mais recentes eram brandas, quase delicadas, com exceção da pressa e de algumas ilusões. Claro que foi chocante sua partida, a forma como se deu. Assim como a nossa, a vida dele era um jogo — e o perdeu.

Quando descasco a cebola da existência meus olhos ardem.

Mesmo as oito horas que se passaram entre a ciência da sua morte e a visão do cadáver por sobre a mesa não foram suficientes para acalmar meu coração alvoroçado. Embora vencedores, os filhos trazíamos na boca um amargo sabor de derrota iminente: talvez um maior inimigo já estivesse à espreita das crianças que éramos então. Porque imprescindível seria o retorno da mãe que aparentemente pretendia morrer para salvar-se daquela vida.

(...)

Continua.




Mais alguns capítulos podem ser lidos AQUI.