31.3.10

31 de março

Nenhuma ditadura é mais forte que um poema de amor.

Quando hoje me acordo madrugante em minha cama, olhos fechados, construo modelos mentais de lugares que eu conheço. Do próprio quarto, da casa, do jardim da minha mãe, daquele hotel em Porto Seguro, do outro em Parati, do trem chegando em Machu Picchu, do ranchinho de sapé lá no sul do Paraná, do Guggenheim Bilbao. Vejo de novo meus livros empilhados sobre a escrivaninha da minha história, vejo a foto de Fidel pregada na parede, ao lado de Candice Bergen. Abro novamente a tampa do alçapão que havia no meu quarto (que até hoje existe, coberta agora com tapete azul). Alçapão que meu pai construiu para que eu me escondesse da polícia política em situações extremas. Eu tinha só quinze anos, mas a polícia secreta da ditadura andava vigiando meus passos. Delegados abriam todas as minhas gavetas, violavam a correspondência, tenentes do Exército me buscavam em jipes de guerra, um belo dia levaram "O Capital", em espanhol. Como já disse, fui preso ilegalmente várias vezes por defender a Liberdade de Expressão — uma delas no quartel do 2.º Regimento de Obuses de Itú-SP, onde o coronel Gomes espantou-se com minha coragem. Fico fazendo esses modelos mentais geográficos e outros mais específicos. Por exemplo, como é o formato da pata de um touro. Uma cúpula geodésica, a úbere de uma cabra, o pistilo de um gerânio. A língua de um beija-flor. Minha ficha no DOPS, a crina do meu cavalo Estrela, os óculos feios do General Figueiredo. E, ao ver um objeto qualquer nessas andanças mentais, quero descobrir-lhe de memória o nome em inglês, espanhol, italiano. Como será criado-mudo em francês? Como se escreve girassol em alemão? Qual era o nome completo de Mozart, Jon Bon Jovi ou Pedro, o Grande? Visualizo a charrete azul de meu pai carregada de bananas. Musa paradisíaca... Meus neurônios dançando na corda bamba da minha história. Serei capaz de articular uma frase em latim? Me lembro de Lênin e seus discursos. Fiat Justitia Pereat Mundus. Não tenho praticado russo, escrevo bilhetes em cirílico, só usando os caracteres, mas preciso voltar a estudar a língua. Tinha pretensões de ler Gorki e Tolstói no original, e Dostoiévski também, e suas recordações da casa dos mortos, e as minhas, e as tuas — mas não as tenho mais. Tanta coisa eu quis fazer, tanta coisa eu quero ainda... — fico pensando.

Então Eros me abre os olhos de novo e vejo, sorrindo ao meu lado, essa menina por quem ontem me apaixonei à luz da lua cheia — e que será, por uns tempos, meu mais recente amor eterno. E me esqueço completamente de que hoje é 31 de março!

Mas é bom não esquecer que a Ditadura Militar só caiu depois da eleição indireta de Tancredo Neves em 19 de janeiro de 1985. Portanto, foram 21 anos de ditadura. E só tivemos eleições (não muito) livres em 1989!

Nossa Democracia ainda é adolescente...