15.10.01

A faca de sartre original

A faca de Abraão.

Março de 2001, Guarujá. Noite alta. Releio a belíssima biografia de James Joyce, escrita por Richard Ellmann. Joyce Ann lá fora no terraço vendo a lua, e Paritosh deitado aqui no chão, entretido com a história de Abraão puxando a faca para seu filho Isaac, contada de várias formas por Kierkegaard. Aliás, o Alcorão diz que foi Ismael, e não Isaac, o filho que Abraão levou à montanha de Morija para ser sacrificado.
Lembro-me de um grande amor que tive um dia, e que depois sumiu. Adna Mattos Gurgel. “Quase todos morrem...” — Vou à cozinha pensando em tomar um vinho, porém trago dois copos de leite.
Ofereço-lhe um, como se fosse uma flor.
— Paritosh, vou colocar um poema teu no livro Solidão a Mil?
Ele interrompe a leitura, atencioso para comigo.
— Qual?
— Aquele do amor que morre e do amor que acaba.
— Ah, mas já o escrevi há tanto tempo... Fosse hoje mudaria muita coisa. Ainda não te contei, mas estou escrevendo um ensaio com o seguinte tema: só amamos quem satisfaz algumas das nossas expectativas. O amor viceja na esperança: finda esta, morto aquele.
— Você acha que todo amor termina em morte ou sumiço? — pergunto.
— Sim, mas é melhor que seja por sumiço. Amor que morre é um horror, nunca morre de vez. Vai morrendo pouco a pouco: é um saco. Vai minguando, definhando, secando. Fica no meio da gente, ali no meio da sala, como visita indesejável, uma doença incurável, um catombinho. Um sintoma.
Começo a rir (seriamente) do que diz Paritosh. “Tenho que abrir esta obra, fazer eco com ela.” — penso.
E ele continua, mais existencialista do que Sartre.
— Esse amor doente fica ali, na relação, meio desengonçado, perambulando, tossindo, enrolado num cobertorzinho. E você sabe qual o único aliado desse pobre diabo? O tédio. Só o tédio é que dá uma espécie de sobrevida ao amor que está morrendo.
— Mas o tédio não vem só depois que o amor morre? — resolvo provocar.
— Nada disso, meu caro: o tédio é o principal assistente do amor que agoniza. O tédio é o elemento central que tenta inutilmente prolongar a vida do desgraçado que falece.
— Bela teoria — tenho que concordar.

Procuro definir em silêncio, como um professor de Filosofia, como se você não soubesse o que significa “teoria”. E fico pensando. Uma teoria é um conjunto de conhecimentos não muito ingênuos, sistematizados e com alguma credibilidade, que se propõem explicar, analisar, interpretar, ou unificar um determinado universo de fenômenos ou de acontecimentos. Fico pensando no existencialismo e nas “Palavras” de Sartre (que eu já li quatro vezes) e me lembro de Simone, dizendo que todo escritor original, enquanto ainda vivo, tem que ser escandaloso. Quando volto a mim, em segundos, Paritosh ainda falava:
— Mas não é só o tédio que o assiste. Vem um monte de acompanhantes, todos de extremo mau gosto. Vêm a monotonia, a tv, o cansaço, o desespero — todos trazendo pílulas de ânimo para o doente. Uma verdadeira romaria de aleijados tentando salvar um lazarento que apodrece. Mas de nada adianta. Depois que o amor fica precisando desse tipo de ajuda, é o fim.
— Ele então se acaba, morre?
— Entra em fase terminal — vai pra UTI .
(Será que deveria existir um “Hospital das Relações”?)
— Sobrevive?
— Morre. Nenhum amor que entra na UTI da relação sai vivo de lá. Às vezes demora anos pra morrer, mas morre. Sempre morre.
— E que medida devemos tomar?
— Chamar a Razão. Só a inteligência é capaz de transformar o moribundo em cadáver. Aí nada mais resta a fazer — como eu já disse naquele poema. Aliás, algo me ocorre agora: você já percebeu que os burros não se separam...
(Intimamente, tenho que aplaudir.)
Pausa.

Ele retorna com seu Soren à montanha de Morija, suponho, e eu me volto para Joyce e leio o que disse ele à lady Gregory, em 1904: "Agora vou formar minha própria lenda e apegar-me a ela".
Eu também — penso.
E volto a me lembrar de Adna. Eu ia almoçar todos os dias na casa dela em São Bernardo do Campo. O pai e a mãe dela eram pessoas maravilhosas. Dona Iracema me ligava para perguntar-me o que eu gostaria de comer no almoço. A própria Edna, de tão grandiosa que era, se tornou indispensável por uns tempos. Até levei-a para conhecer minha Mãe. Talvez meu amor por ela não tenha morrido. Porque nos separamos por consenso. E por sumiço...

E fico pensando em Abraão. Este homem, que ouvia vozes e chegava até a discutir com Deus, está na origem do judaísmo, do islamismo e do cristianismo. Não me lembro do nome da escrava egípcia com quem ele teve seu primogênito Ismael. Que falta faz uma Bíblia numa hora dessas! Só sei que Sara permitiu, mas depois ficou com ciúmes. Como vemos, o ciúme estraga até casamento mitológico.


Esta é a página 144 do meu livro Solidão a Mil. Você já leu?

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